quinta-feira, 14 de junho de 2012

Mauricinho Hippie


Mauricinho Hippie, o homem que coloriu Goiânia

0/07/2011 - Carlos Brandão
Mauricinho Hippie: um dos lendários personagens que circularam pelas ruas de Goiânia
Aos 71 anos, Maurício Vicente Oliveira guarda pouco de um dos maiores personagens que essa cidade conheceu, o colorido e contagiante Mauricinho Hippie

Aciono alguns amigos, para tentar descobrir o paradeiro de um dos caras mais importantes da história cultural e comportamental de Goiânia, o popular Mauricinho Hippie. Faço alguns telefonemas e descubro as pistas todas. Meu editor sonha com uma entrevista para a TV e para o jornal do grupo JI. Do outro lado da linha, Maurício, suavemente, explica: "Brandão, vamos fazer uma entrevista para o jornal e esquecer essa coisa de televisão." Ok, aceito.

Maurício Vicente Oliveira, 71 anos, magro, alto, cabelos brancos e voz pausada, tranqüila, mostra pouco ou quase nada do jovem que agitou Goiânia entre 1965 e começo dos anos 90. Sua história é cheia de estórias. Cada amigo ou conhecido tem um fato a mais para acrescentar. Ele assume alguns e nega outros. Em poucos desses casos, ele pede: "Vamos deixar isso de lado. Não quero falar disso mais. Os tempos passaram e não tem sentido ficar falando do que já passou."

Na hora, me lembro de Mário Quintana, falando do tenor Caruso: "Não é brinquedo estar morto e continuar cantando/ também não é brinquedo continuar vivo e ficar falando para o que passou!" O Maurício poeta, por um instante, se encontra com o poeta Quintana. Como eu dizia, Mauricinho Hippie agitou e coloriu Goiânia por mais de 20 anos. Suas roupas extravagantes, seus animais e sua bicicleta coloridas fizeram dele um personagem inesquecível, para quem viveu na cidade, nessa época.

Uma das lendas sobre o cara, confirmada por ele, é o ano e a motivação que o fez passar a usar roupas totalmente não convencionais. Em 1965, o pai de Maurício, insatisfeito com os caminhos artísticos que o filho resolveu seguir, pegou seus poemas, letras de músicas, partituras, telas e desenhos e queimou tudo numa fogueira. No mesmo instante, Maurício pegou todas as suas roupas caretas e queimou numa fogueira ao lado da feita pelo pai.

Começava aí o Maurício esfuziante. O homem que viria colorir Goiânia nascia ali. "A partir daquele ato de queimar minhas roupas normais, eu passei a fabricar as roupas que vestia", explica. Isso em 1965. Antes da Tropicália. Durante o movimento hippie. Maurício era moderno e politicamente correto, antes dessas frescuras entrarem na moda. Um exemplo: ele pintava seus cachorros e saía com eles pela cidade. Mas explicava: uso violeta de genciana, que não agride o animal".

Maurício, com 12 anos, foi estudar acordeom, influenciado pela família, numa escola badalada na época, Academia Mascarenhas. Ficou lá por seis anos. Ainda fez teoria e solfejo, no antigo Conservatório da UFG. Fez ainda o curso livre de artes, na Escola de Belas Artes, mas parou no primeiro ano. Ao final dos estudos, tocava piano, acordeom, órgão e violão. Fazia pinturas e desenhos, além de muita poesia. Mesmo tendo estudado música, ele conta que compôs apenas quatro ou cinco músicas.

Uma delas, Guerra Nuclear, defendida no palco do Cine Teatro Goiânia, durante o 1º e único Festival Universitário de Música Brasileira. Nesse festival, Maurício mostrou sua canção vestindo uma roupa preta e envolvido por um terço com imensas contas prateadas. Nas mãos uma cruz negra, gigante. Nem precisa falar do frisson que isso causou naquele final dos turbulentos e criativos anos 60. Quase 20 anos depois, assistindo Nina Hagen, cantora alemã que carregava uma cruz durante seus shows, no velho Estádio Olímpico, Maurício virou pra esse repórter e brincou: "Brandão, se lembra da cruz que eu usei no festival? Humilhava essa da Nina."

Ousado, contemporâneo e criativo, Mauricinho Hippie logo se tornou uma personalidade na cidade que o acolheu, logo que veio de sua terra natal, Araguari, com cerca de nove anos. Sus incursões pela música ainda o levaram a dois grupos: Santofício, ao lado de Wanda Almeida e Adalto Bento, e "um grupo musical do Mauri de Castro, que se chamava, se não me engano, Aroeira". As pinturas e desenhos, ele vendia nas feiras. Falar em feira, Maurício foi um dos fundadores da Feira Hippie.

"A gente expunha as mercadorias, somente artesanato e artes plásticas, no Parque Mutirama. Foi lá que começou a Feira Hippie. Eram cerca de 20 a 30 pessoas. Me lembro que o artista plástico Tancredo Araújo era um deles. Depois a Feira se mudou para a Praça Cívica e em seguida, para a Avenida Goiás. Eu fui até a fase da Avenida Goiás. Depois parei, quando a feira deixou de ser hippie", comenta. As poesias de Maurício renderam um livro, As Bruxas, lançado no final dos anos 80. "Cheguei a ensaiar duas peças de teatro, Gimba, com Cici Pinheiro, e Apocalipse, com Carlos Fernando Magalhães, mas não fui até ao fim, não cheguei a me apresentar."

Apesar de tantas atividades artísticas, o que levou Maurício a ser reconhecido pela população foram suas roupas extravagantes, sua bicicleta idem e as flores que carregava nos braços e distribuía para as pessoas. Outro caso que contam do artista: no governo de Henrique Santillo, em 1988, o administrador do então Centro Administrativo, proibiu que Maurício entrasse no prédio, para ir até a Secretaria da Cultura, no nono andar. Ele reclamou para alguns amigos, inclusive para mim.

Eu e PX Silveira, fomos ao secretário Kleber Adorno e pedimos a ele que tentasse revogar a proibição. Eu e PX éramos assessores da secretaria. Kleber, na hora, encaminhou ofício ao administrador do prédio, dando ordens para que Maurício pudesse entrar, usando suas roupas "estranhas", motivo maior da proibição. Em seu ofício, Adorno fez uma recomendação para a administração do espaço: que se proibisse, em vez do Maurício, a entrada de corruptos. E completou dizendo que se essa sugestão fosse acatada, o prédio certamente ficaria vazio. Comunicado da revogação da proibição, Mauricinho Hippie pegou sua roupa mais extravagante e entrou triunfal no Centro Administrativo. Ele usou, na época, para irritar seus censores, uma cueca e um bustiê de crochê azul. Cobrindo o corpo, um longo casaco de tricô, que não cobria nada e deixava à mostra seu corpo magro.

Em 1995, Maurício sofreu um acidente e perdeu um pé. A partir daí, mesmo tendo colocado uma prótese, passou a ficar em casa e pouco sai. Numa entrevista feita por mim, logo depois do acidente, monossilábico, ele explicou porque tinha parado de circular colorido pela cidade: "O Maurício esfuziante morreu!" Hoje, aos 71 anos, ele diz ter consciência da importância que teve para Goiânia, argumenta que era uma época muito criativa, sentia que as pessoas gostavam dele, guarda boas lembranças, mas não sente saudades da época e nem guarda nada daqueles tempos. Nem roupas, nem músicas, nem pinturas, nem a bicicleta. Nada. Sequer seu livro As Bruxas, ele tem na sua casa.

"Desde que passei a ficar em casa,  tenho saído apenas para festas e reuniões na casa de alguns amigos." Uma dessas amigas, Adriana Rodovalho, organizou, em 2010, uma festa para comemorar  os 70 anos de Maurício. Muita gente apareceu para um abraço. Velhos amigos e admiradores deram as caras. Ele diz ter adorado a festa, até mesmo porque pode reencontrar muita gente que não via há anos. Algumas pessoas ainda procuram Maurício. Entre elas, jornalistas e estudantes. Alunos de um curso de cinema foram até ele e ficaram de gravar um vídeo sobre sua vida. Mas até hoje não voltaram. Do alto dos seus 71 anos, calmo, voz pausada, frases curtas, ele fala: "Gosto dessas visitas. As pessoas não me incomodam."

Desde que a mãe morreu, há cinco anos, Maurício mora só. "No começo foi difícil, mas me habituei." Nos anos 90, um estilista de Belo Horizonte veio a Goiânia e quis fazer um desfile usando uma personalidade da cidade como tema. Mauricinho Hippie foi escolhido e teve suas roupas e sua bicicleta recriadas pelos alunos da oficina ministrada pelo tal estilista. O resultado foi um belo desfile que mostrou ao goianiense, como se vestia um dos seus mais ilustres moradores.

Hoje, Maurício diz que acompanha o mundo e as coisas da arte e da cultura, pela televisão. Não usa computador, internet e nem celular. "Pra que?", pergunta com a voz pequena e um sorriso no canto da boca típico de quem já viveu muito e não precisa dessas "novidades" para continuar vivendo. "O Maurício de hoje é mais sério, mais compenetrado. Olho o mundo com olhos de quem tem 70 anos, a minha idade", admite. Seus olhos de 70 anos, quer ele queira, quer não, brilham como os de um garoto de 18. Um brilho de quem nasceu criativo e não vai deixar isso morrer nunca, apesar de se afastar de tudo. Diz que gosta, quando, na TV, aparecem artistas como Caetano Veloso. Mas admite que os bons artistas aparecem muito pouco na telinha.

Para quem achava que o colorido e as "loucuras" do Mauricinho Hippie tinham algum fundo lisérgico ou etílico, uma declaração pra encerrar o assunto e as dúvidas: "Nunca bebi e nem usei drogas. Nunca!" Sobre o fato de não ter guardado nada do seu passado, explica tranqüilo: "As coisas foram se acabando naturalmente. Não senti necessidade de preservar. Tudo me fez muito bem, as coisas passaram pela minha vida, me alegraram, me deixaram feliz, mas passaram. A família de Maurício é uma irmã que mora nos Estados Unidos e, todos os anos, vem visitá-lo. "Esse ano ele vem em outubro", finaliza o papo. Depois posa para as fotos, dá um abraço no repórter, agradece e volta para seu mundo.

Esse é o setentão Maurício Vicente Oliveira, morador de uma tranqüila praça no Setor Aeroporto, cercada de vendedores de carros e residências antigas. Nada nele lembra o Maurício esfuziante. Nada. Sério, sereno, na dele, parece que Mauricinho Hippie se foi e deixou um homem tranqüilo, sabedor de sua importância para mudar o comportamento de Goiânia, numa época que precisava de mudanças. Sua parte foi feita de maneira correta. E ele, agora, não precisa acrescentar mais nada ao que foi feito, ao que deixou de legado. Por isso fala pouco, é monossilábico. Não precisa explicar mais nada. Quem quiser que assuma esse papel, agora.

Maurício é um senhor que achou seu centro e vive dentro dessa sua descoberta. Cabe à cidade respeitar sua decisão e reverenciar um dos seus mais ilustres e criativos habitantes. Feliz de quem pode conviver com ele, como amigo e como jornalista, como eu pude. Paz, meu amigo Maurício! E tomara que Goiânia, no futuro, saiba te agradecer de maneira correta e elegante. Como merece um cidadão que ajudou a mudar a cara da sua cidade. 

FONTE: MATERIA PUBLICADA EM 30/07/2011 NO JORNAL DA IMPRENSA

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